A sobrecontratação de energia das distribuidoras, que este ano atingiu 113,6% em média, deve seguir em trajetória ascendente até 2019, quando chegará a 115,8% da necessidade de atendimento do mercado regulado. As sobras contratuais nesse mercado são “o incêndio do dia”, em razão do impacto financeiro para as empresas, mas o problema é sistêmico, adverte o presidente da Associação Brasileira de Distribuidores de Energia Elétrica, Nelson Leite.
“Nós temos 80% das distribuidoras expostas ao risco de preço do mercado de curto prazo, com grande chance de perder dinheiro por causa disso”, admite Leite. Ele argumenta, no entanto, que a situação não se restringe à distribuição, já que boa parte da sobra é estrutural. Outra discussão que tem mobilizado as distribuidoras é o desequilíbrio provocado pelo aumento do custo financeiro que as empresas carregam até o ressarcimento no próximo reajuste tarifário.
Os dois temas serão debatidos pelo presidente da Abradee durante o Enase 2016, que vai acontecer nos dias 18 e 19 de maio no hotel Sofitel, no Rio de Janeiro. O maior evento do setor elétrico é promovido anualmente pelo Grupo CanalEnergia, em parceria com 19 associações do setor. Confira a íntegra da entrevista do presidente da Abradee:
Agência CanalEnergia: Os impactos da conjuntura criaram novos desafios ao setor elétrico, para garantir a retomada de condições mínimas de normalidade. Como pode se lidar, por exemplo, com o excesso de energia no mercado?
Nelson Leite: Estamos com 109% de sobrecontratação na região Sudeste, 113% na região Sul, 115% no Centro-Oeste; 110% no Nordeste e 118% no Norte. A média Brasil, considerando aí 95% do mercado, está dando 113%. Tem uma perspectiva de sobra de garantia física até 2021. A preocupação hoje é o seguinte: o efeito econômico da supercontratação nas distribuidoras. Por que tem esse efeito econômico? Porque a distribuidora compra energia por um preço médio, por um Pmix, e ela está liquidando essa energia no mercado de curto prazo, ao PLD. Quem liquida no Nordeste está pegando um PLD mais baixo. Quem liquida nos submercados do Sul, Sudeste, está liquidando a um preço mais baixo.
Um levantamento que nós fizemos distribuidora por distribuidora mostra que a sobrecontratação é sistêmica no segmento. Sobrecontratação hoje não é um problema isolado de uma distribuidora; é uma questão sistêmica. Nós temos 80% das distribuidoras expostas ao risco de preço do mercado de curto prazo, com grande chance de perder dinheiro por causa disso.
Agência CanalEnergia: Então, boa parte dessa sobra é estrutural?
Nelson Leite: Boa parte dessa sobra é estrutural. E é muito importante ficar claro o seguinte: a distribuidora não deu causa a isso. O leilão A-1 de 2015, por causa daquele piso que tem lá no decreto 5.163, que fala que as distribuidoras são obrigadas a recontratar montante de reposição, no mínimo, de 96% da energia existente que elas têm hoje, fez com que algumas distribuidoras comprassem energia que elas não precisam. Ou seja, lá no final e 2015 algumas distribuidoras já sabiam que teriam um ambiente de sobrecontratação em 2016, mas, por força desse artigo do decreto 5.163, foram obrigadas a comprar mas energia do que precisavam, e essa sobrecontratação, de 737 MW médios, veio desse problema do A-1.
Se não tivesse a obrigatoriedade de a distribuidora apresentar uma declaração de montante e reposição e recontratar no mínimo 96%, ela poderia ter contratado 2.198 MW médios e contratou 737 MW médios a mais. Uma outra questão é a migração de consumidores especiais para o mercado livre. Nós temos hoje mais de 2 mil pedidos de consumidores para o mercado livre. Consumidores especiais, que ficam entre 500 kW e 3 MW, que podem comprar energia de fonte incentivada. Tem um desconto na Tusd para compra de energia. O que acontece? O consumidor migra para o mercado livre e essa energia que está sendo vendia para ele hoje passa a ser sobrecontratação para a distribuidora.
Agência CanalEnergia: Quanto, na média, representa essa migração em termos de redução de mercado?
Nelson Leite: Ela dá mais ou menos 1,3%. A sobrecontratação sobe de 2016 para 2019. A média que projetamos para 2016 é 113,6%; em 2017, ela vai para 115%; 2018, é 114,9%; em 2019, 115,8% e aí, em 2020, ela começa a cair para 113% e depois para 109%. Isso aqui, 113%, dá mais ou menos 6 mil MW médios. Nós pegamos dados do ONS (até 2020) e da EPE (até 2020), que dariam 10,4 mil MW médios em 2018 e 2019, no pico.
Agência CanalEnergia: Além da sobrecontratação, qual é a agenda prioritária da distribuição hoje?
Nelson Leite: O incêndio do dia é a sobrecontratação, por causa do impacto financeiro que isso tem para a distribuidora. Eu diria para você que, nas ações de curto prazo, esta é a mais emergencial que nós temos. Agora, quando você olha um pouco mais, você vê que, estrategicamente, nós temos uma agenda mais importante, que é garantir a sustentabilidade do negócio. Por que nós precisamos garantir a sustentabilidade? Porque o setor de distribuição teve uma perda muito grande de Ebitda no último ano, em função exatamente do componente financeiro. Quando você tem um componente financeiro muito alto, ele vem corrigido pela Selic e você capta no mercado com custos muito acima da Selic, a diferença entre o custo real do dinheiro e a Selic é prejuízo para a distribuidora. Então, esse é um dos fatores: a questão do custo financeiro de ficar carregando isso aí.
O que pode desequilibrar? Esse custo financeiro é um [fator]. Você tem componentes financeiros muito altos, tem a distribuidora carregando esse custo financeiro e arcando com a diferença entre o custo real do financiamento e a Selic, e isso leva a um desequilíbrio. Aí vem outras coisas. Por exemplo, a inadimplência. Vem perdas, vem inadimplência. Outra fonte de desequilíbrio financeiro é quando você aumentou muito o custo da energia e a Parcela B ficou lá embaixo. Descolou uma coisa da outra e você precisa bancar essa diferença. Você precifica as perdas pelo Pmix da distribuidora. Empresas que tem perdas muito elevadas são punidas, porque têm um aumento do Pmix.
Fizeram no passado a RTE (Revisão Tarifára Extraordinária) e a bandeira tarifaria para cobrir custos da parcela A. Só que a parcela A cresceu muito e a Parcela B diminuiu, caiu para 14%. Isso aqui no passado já foi 42%. Quase a metade do que a distribuidora arrecadava era parcela B para pagar as contas dela. Então, se tinha problema de inadimplência e de perda, ela tinha um colchão maior de recursos para poder mitigar aquilo. Agora dos 14%, 8% são para cobrir PMSO da distribuidora, que são gastos com pessoal, material, serviços e outros. E 6% é Ebitda regulatório. Esse Ebitda regulatório é o pedaço do bolo que a distribuidora tem pra pagar financiamentos, para fazer os investimentos na área de concessão, modernização da rede, para remunerar o acionista. Uma variação, por exemplo, de 10% na parcela A praticamente aniquila o caixa disponível para investimentos. Nós diríamos o seguinte: a Parcela A está comendo a Parcela B.
Agência CanalEnergia: E o que acontece agora? A Aneel tinha criado um mecanismo permitindo que as distribuidoras pudessem ficar com eventuais excedentes de arrecadação do caixa das bandeiras tarifarias para amortizar o financeiro.
Nelson Leite: Agora entrou na bandeira verde e você não tem excedente. Na realidade, o que esta acontecendo é que nós temos um problema aqui que não é conjuntural; é estrutural. Essa questão da distribuidora ser obrigada a fazer comercialização de energia para toda a sua área e ficar responsável pela arrecadação de um monte de encargos e de tributos com uma parcela pequenina leva a empresa a ter um risco enorme por uma parcela sobre a qual ela não tem gestão, que é a parcela de energia, por exemplo. Então, acho que nós temos que repensar essa questão da energia, da commodity, e do fio, para poder mitigar o risco da distribuidora, porque tem um risco enorme por uma parcela pela qual ela não está sendo remunerada.
Agência CanalEnergia: Como anda a questão do endividamento?
Nelson Leite: O que nós tivemos no ano passado com todos esses fatores que nós falamos? Inadimplência e perdas aumentando, os componentes financeiros da CVA, um custo financeiro que diminuiu o Ebitda da distribuidora. E quando esse caixa diminui, a empresa tem que se socorrer no mercado financeiro. Se temos um fenômeno de redução de Ebitda com aumento de endividamento, automaticamente a relação entre divida e Ebitda altera para muitas empresas. Você fica numa situação que deteriora o equilíbrio. Por isso é que nós precisamos repensar isso do ponto de vista estratégico.
Agência Canal Energia: Seria o quê? Uma mudança regulatória? Ou uma mudança do modelo em si, porque já tem muita gente defendendo isso?
Nelson Leite: A palavra não deveria ser mudança, mas aperfeiçoamento. Eu acho que a gente deveria buscar encontrar aperfeiçoamentos que nos levem a ter maior estabilidade, maior previsibilidade.
Agência CanalEnergia: E como se faz numa situação dessas para garantir os investimentos necessários para atender as exigências do contrato de concessão?
Nelson Leite: Esse é um ponto de preocupação, que é nós focarmos nos investimentos necessários para melhoria, para modernização das redes, melhoria dos nossos indicadores de maneira a atender aquilo que consta no contrato de concessão renovado. Esse é um ponto crucial. Tem o incêndio do dia, que é a sobrecontratação, e tem essa outra questão que é trabalhar em um modelo de aperfeiçoamento de maneira que a gente tenha equilíbrio econômico financeiro e uma previsibilidade maior para poder garantir os investimentos necessários.