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A nota técnica com as propostas do governo para a reorganização do setor elétrico passou por uma importante avaliação, a do setor jurídico. Apesar de diferentes avaliações sobre impactos e perspectivas quanto ao potencial de desjudicializar o setor, no geral, a impressão é positiva e recebeu elogios sob diferentes ângulos de análise. Como ainda está em processo de diálogo entre os agentes e o poder concedente são esperados ajustes que possam alinhar pontos que necessitam de maior detalhamento. Contudo, a maior incerteza está no campo político e não no técnico.

O especialista do escritório Demarest Advogados, Raphael Gomes, disse que essa visão positiva deriva do fato desta ser a primeira alteração em anos que o setor elétrico tem e que é concatenada entre os agentes para atuar sobre questões estruturais, que não são pontuais ou casuísticas. Mas, opinou, há dois pontos que precisam ser endereçados e que não fazem parte do texto em análise. O primeiro é como se dará a questão da transição, pois os investidores precisam conhecer a regra para evitar surpresas quando da entrada em vigor da lei e assim ter previsibilidade para seu planejamento. O segundo ponto é mais delicado  e envolve o momento político brasileiro que tem sido marcado pela instabilidade.

Ele lembrou da tramitação da MP 735 que entrou no Congresso Nacional com oito artigos e saiu de lá com 35. “Precisamos ter as regras de transição claras para atender a previsibilidade de prazos e passos dos agentes. Seria importante não termos uma medida provisória nesse caso porque, se o governo publica essa MP, que envolve uma mudança expressiva no setor elétrico, e depois se esta não for aprovada pelo Congresso Nacional, teremos uma grande instabilidade. O risco político pode gerar o oposto do que a medida está almejando que é a desjudicialização”, acrescentou.

Gomes não descartou o questionamento de pontos mais polêmicos da medida na Justiça. A descotização pode ser um desses pontos por levar a potenciais aumentos de tarifa no ACR, como é admitido até mesmo no texto da nota. Mas, ressaltou que ações casuísticas como essa não resolvem o problema do setor como um todo, em sua avaliação é preciso ter uma visão mais ampla das medidas e seus impactos e benefícios.

Descotização de usinas pode ser fonte de questionamentos judiciais, mas advogados divergem sobre esse potencial

Para o ex-diretor da Agência Nacional de Energia Elétrica, Julião Coelho, a proposta leva efetivamente a um novo marco regulatório do setor, de forma mais significativa até mesmo que a lei 10.848/2004, e no médio e longo prazo a uma tendência de tarifas menores. Em sua opinião, a proposta traz o consumidor para a gestão do sistema com a questão da granularidade de preços, pois calibram o seu consumo de acordo com o custo da energia o que traz importante equilíbrio entre a oferta e demanda.

“O modelo antigo utilizava muito do que existia já na [lei] 9.648/1998, a única mudança da época efetivamente foi a introdução do leilão e deixava de ser o pagamento de uso de bem público para o menor preço de venda (…) e permitiu o financiamento da geração”, comentou. “Mas, esse modelo deixou de funcionar quando o país deixou de crescer e mostrou-se desprovido de racionalidade econômica por seu preço sem a granularidade”, criticou.

Para ele, que é sócio no escritório Julião Coelho Advogados Associados, aspectos importantes são a preocupação em eliminar os subsídios indicados na nota, a separação entre o lastro e energia com o sinal locacional que traz essa racionalidade econômica. Em sua avaliação essas medidas são mais de médio e longo prazo e assim levam a uma redução do conhecido Custo Brasil, por isso, a expectativa de potencial de redução tarifária e consequente crescimento econômico.

Coelho lembrou ainda que a proposta em consulta não é o resultado de um trabalho de curto prazo feito pelo ministério. Esses pontos e princípios – divulgados dias antes da NT – já estavam em discussão com o setor elétrico por meio do P&D estratégico na Aneel do qual fazia parte do consórcio vencedor da disputa. “Essa proposta reflete essas discussões que já estavam sendo conduzidas lá atrás e por isso a boa receptividade do mercado, pois são temas que já vêm sendo bem trabalhados”, apontou.

Para ele, a descotização não se configura em quebra de contrato, pois não se configuraram como contratos de direito privado e não estão sob a proteção do que se classifica como ato jurídico perfeito, quando um acordo é feito entre duas empresas. Como é o poder concedente quem define o conteúdo de contratação das distribuidoras, esses contratos estão sujeitos ao princípio da mutabilidade. “Não vejo, em análise inicial o risco de questionamento da ordem jurídica”, analisou Coelho. Mas admite que é possível ocorrer o questionamento de consumidores regulados, contudo, deve-se lembrar que o custo dessa energia não é apenas o valor da RAG mas tem ainda o risco hidrológico que foi transferido ao consumidor.

Rodrigo Leite, sócio do escritório LVA Advogados, corrobora a análise de que apesar de apresentar uma extensa lista de pontos, a proposta é bem vista e apesar de existir questões que podem ser questionadas judicialmente, o governo indicou que pretende mexer em temas estruturais. Contudo, ainda se mostra reticente quanto à sustentabilidade das medidas no longo prazo por deixar muitos pontos ainda em aberto. Por isso, ainda é necessário muita cautela porque, em suas palavras, existe muito a se discutir nessa consulta e muito a melhorar, apesar de apontar que houve um avanço.

Ele lembra que muito do que se esperava em termos de mudanças no setor já estava sendo discutido pelo governo. Leite aponta entre os destaques a descotização, o término da energia incentivada, a busca pela redução dos subsídios e a centralização da contratação de energia pelas distribuidoras com a possível elevação da importância da CCEE, apontada como forte candidata à gestora desses contratos. Em sua avaliação o segmento de geração distribuída ainda pode ter incertezas quando aos preços.

Leite advoga pela cautela quanto aos efetivos impactos da proposta quanto a desjudicialização do mercado de curto prazo até porque atualmente passamos por um momento de GSF acentuado. Ele alerta ainda pela necessidade de que estas alterações definam bem o papel de cada agente e seus espaço de atuação e a equação de preços esteja bem definida para que haja a esperada segurança jurídica que o setor vem defendendo.

Ainda sobre a descotização, um tema que o advogado defendeu meses atrás em entrevista à Agência CanalEnergia que não deveria ser alterado, ele disse que este é um assunto de impacto. Em sua análise ainda é difícil saber o impacto que essa proposta terá no setor. Ele diz que este ponto poderá levar a um questionamentos judiciais por parte de consumidores que sentirem-se lesados já que a própria Nota aponta para um aumento de 7% na tarifa caso a energia cotizada passe a ser negociada, por exemplo, a R$ 200/MWh. Contudo, lembra que é difícil alterar algum ponto da regulação sem afetar o passado.  “Por isso precisamos saber como essa medida estará situada no contexto da reforma, não se pode analisar de forma isolada”, disse Leite.

O sócio do LVA vê o momento político como o maior risco às mudanças que estão previstas, pois é necessário alterações de lei que dependem do Congresso Nacional. “A efetividade das propostas dependem da força que o governo tem, se o governo e forte é mais difícil mexer no texto que será apresentado, mas se o governo está fraco a possibilidade de alterações é grande e é esse o caso atual”, finalizou.