Grandes grupos de distribuição de energia elétrica aumentaram a pressão por uma solução rápida do governo e da Aneel para os problemas de caixa das empresas com a crise do coronavírus. Em notificações enviadas na última terça-feira (31/03) a seus supridores, Light, Enel e Equatorial Energia alertaram para uma possível necessidade de redução temporária dos volumes de energia contratados em leilão, alegando “caso fortuito” e “evento de força maior”.
As empresas destacam que a queda do consumo e o aumento da inadimplência resultantes do estado de calamidade pública e das medidas de isolamento social dificultarão o cumprimento pleno dos contratos de comercialização no mercado regulado. Nas notificações, elas informam que estão avaliando os impactos das medidas de enfrentamento da pandemia e sinalizam para a eventual necessidade de redução nos contratos, proporcional à queda de mercado e à diminuição da arrecadação provocada pela inadimplência de consumidores.
Para advogados especializados no setor elétrico, o questionamento dos contratos regulados cria instabilidade jurídica e pode levar a disputas judiciais. O presidente da Associação Brasileira de Distribuidores de Energia Elétrica, Marcos Madureira, garante, porém, que se trata de um aviso apenas, feito por algumas empresas que estão em situação mais difícil. “Não significa rompimento de contrato, nada dessa natureza”, completa o executivo.
Ele lembra que as distribuidoras tem enfrentado um momento de desarranjo dentro do setor, e o impacto resultante da perda de mercado e do aumento da inadimplência é significativo. Nos cenários traçados pela Abradee, a perda poderia chegar em torno de 30% e, nesse caso, as empresas teriam que buscar no mercado mais uns 10% para manter o fluxo de recursos da cadeia do setor, o que elas não tem estrutura para fazer.
“Claro que redução de mercado e inadimplência é um movimento esperado dentro da estrutura das empresas, mas não algo da natureza que estamos passando”, argumenta Madureira. A associação tem participado de reuniões frequentes com a agência reguladora e os ministérios de Minas e Energia e da Economia, e espera para os próximos dias o anúncio de uma medida concreta. A solução ainda não teria sido definida, mas uma das possibilidades seria uma empréstimo às distribuidoras, nos moldes do foi feito com o financiamento via Conta ACR.
A Enel Brasil confirmou ter notificado suas principais contrapartes no mercado de energia de que está realizando uma análise do contratos e do impacto da situação, diante das medidas anunciadas pelos governos locais e pela Agência Nacional de Energia Elétrica. “Cerca de 80% da conta de energia elétrica arrecadada pelas distribuidoras corresponde a impostos, encargos setoriais, custos de compra e transmissão de energia que são transferidos aos governos e outros agentes, como geradores e empresas de transmissão. Portanto, a empresa está sinalizando a necessidade de manter um diálogo constante com todos os agentes do mercado, de forma a mitigar o cenário atual de menor consumo”, disse, em resposta à Agência CanalEnergia.
Na semana passada, a Aneel aprovou a suspensão por 90 dias do corte por atraso no pagamento das faturas de consumidores residenciais e de serviços essenciais. As distribuidoras preveem que a medida pode estimular o não pagamento da conta de luz nesse período e cobram urgência na adoção de algum tipo de solução que envolva todo o setor elétrico.
A agência também indicou que pode analisar em algum momento o impacto da crise sobre a redução do uso do sistema de transmissão, nos montantes contratados pelas distribuidoras. Na avaliação da Light, o problema de sobrecontratação também se aplica aos contratos de compra de energia (CCEARs) dos geradores.
Raphael Gomes, sócio do escritório de advocacia Demarest, reconhece que as distribuidoras estão em uma posição delicada no momento, por representarem a ponta da cadeia do setor elétrico, mas adverte que a pior solução que pode existir para o problema é a contestação dos CCEARs. “Nossa percepção é de que se isso for para frente vai ter judicialização”, avalia o especialista.
Ele defende uma solução rápida e acredita que é possível adotar alternativas, considerando erros e acertos do passado. Uma delas poderia ser um empréstimo para garantir o fluxo de caixa das distribuidoras, como foi feito com a conta ACR. “A solução está na mão da Aneel e do governo”, afirma, destacando que mesmo que o gerador concorde em renegociar temporariamente o contrato, quem tem que aceitar o argumento de força maior é a agência reguladora.
Gomes lembra ainda que a exposição de motivos da Lei 10.848, que estabeleceu em 2004 o novo modelo do setor elétrico, destaca o respeito aos contratos como fundamental para a expansão do sistema. Ele defende que essa “cláusula pétrea” do modelo não pode ser rompida. Em sua avaliação, a situação hoje do mercado regulado é mais complexa que a do mercado livre, onde pedidos de revisão de contratos alegando força maior também surgiram nas últimas semanas, criando certa tensão no setor. A explicação é de que em vários casos no ACL as partes envolvidas tem conseguido alinhar “soluções ganha ganha.”
Para Rodrigo Machado, sócio do escritório Madrona Advogados, a notificação aos supridores foi um mecanismo de pressão por parte das distribuidoras e um mecanismo preparatório para medidas posteriores, mais do que qualquer outra coisa. Ele destaca que a correspondência não tem efeito imediato, porque as empresas só poderão alegar caso fortuito em uma eventual negociação com a sua contraparte após o reconhecimento pela Aneel.
Para o especialista, trata-se de uma ação unilateral, que é frágil juridicamente. O fato de que algumas notificações são mais claras em dizer que não há medidas a serem tomadas agora e outras nem tanto causou desconforto, tendo em vista que a liquidação financeira no mercado de curto prazo vai acontecer em dez dias. Madureira, da Abradee, reforça, no entanto, que o problema pode se agravar já em abril.
Machado acredita que é necessário uma medida rápida por parte da Aneel para aliviar o caixa das distribuidoras, mas alerta que repassar para outros agentes esse impacto só piora a situação. “Reconhecer isso é pegar um problema da distribuidora e levar para o setor como um todo”, afirma.
O advogado também fala em risco de judicialização, que seria o pior cenário em razão de decisões liminares precárias, que não trazem solução imediata. Uma eventual disputa judicial só complicaria ainda mais a solução para os débitos do GSF no mercado de curto prazo, alerta.
Em relação aos contratos do mercado livre, ele também vê um problema a ser resolvido, já que o fato de se tratar de uma negociação bilateral não impede que problemas de insolvência de determinados agentes afetem outros atores do mercado. Um exemplo disso, lembra, foi o caso da crise da comercializadora Vega, que acabou atingindo outros agentes comercializadores.