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À medida em que os impactos da pandemia do coronavírus pressionam o caixa de empresas de diferentes segmentos, decisões judiciais e leis aprovadas às pressas por assembleias legislativas começam a dar mostras de como a crise criou o caldo perfeito para mais uma onda de judicialização no setor elétrico. A situação preocupa muito, afirma o diretor Jurídico da Associação Brasileira de Distribuidores de Energia Elétrica, Wagner Ferreira. A Abradee ajuizou Ações Diretas de Inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal contra leis dos estados do Rio de Janeiro, Santa Catarina, Paraná e Rondônia que estendem aos demais consumidores a proibição de corte por inadimplência, limitada pela Aneel a consumidores residenciais e a serviços essenciais, e impedem a inscrição em cadastro de inadimplentes.
Decisões semelhantes tem sido proferidas pelo Judiciário, em ações nas quais diferentes tipos de empresas alegam não terem como cumprir seus compromissos, diante da paralisação de atividades e de outras restrições impostas pelo estado de calamidade pública. Há exemplos de companhias em processo de recuperação judicial que obtiveram liminares determinando a suspensão por 90 dias do corte no fornecimento de energia elétrica e de outras serviços essenciais, como água e telefonia.
Para o diretor da Abradee, desde o início da crise a associação tem insistido no quanto é necessária a coordenação pelo governo federal do processo de enfrentamento das questões relacionadas ao setor elétrico, o que foi feito com a instalação do comitê de coordenação pelo Ministério de Minas e Energia. “Quando começam estados, municípios, decisões judiciais, a entrarem nessa seara, você começa a perder aquela unidade que é o serviço de energia. É um serviço regulado e controlado nacionalmente, com regras especificas”, argumenta o executivo.
“A gente tem atuado com muita veemência no sentido de apresentar essa visão, nos ambientes somos chamados a opinar. No STF, a gente entrou contra quatro leis estaduais que vão além da Resolução 878 [da Aneel]. Os estados fizeram limitações adicionais [ao corte de energia]”, diz o executivo. A associação das distribuidoras tem trabalhado nos últimos 40, 50 dias, afirma, na esperança que em breve tenha uma decisão judicial de repercussão geral do STF que restabeleça essa organização.
O advogado Roberto Keppler, que representa várias empresas em recuperação judicial, afirma que todos os clientes que obtiveram liminar conseguiram comprovar o agravamento das dificuldades pelas quais já estavam passando, a partir da decretação do estado de calamidade pública. “Temos estados com grandes restrições de movimentação e de trabalho”, justifica Keppler, que é sócio do escritório Keppler Advogados Associados. “Estamos pedindo para que essas empresas tenham solução de continuidade e não vão à falência.”
Ele explica que, passado esse período, todos os beneficiados por liminares terão que negociar com as concessionárias o pagamento dos valores suspensos judicialmente, e diz que há uma recomendação do Conselho Nacional de Justiça para que os juízes responsáveis pelos processos de recuperação tentem, na medida do possível, preservar a atividade empresarial. “Se você analisar, eles foram muito sensíveis. Não são empresários que querem se aproveitar da situação”, afirma, acrescentando que não há uma linha de crédito disponível nos bancos de primeira linha para empresas nessa situação.
Um das liminares obtidas pelo escritório foi concedida pelo juiz da 2ª Vara de Recuperação de Empresas e Falências do Tribunal de Justiça do Ceará, Cláudio de Paula Pessoa, que suspendeu os pagamentos do plano de recuperação da Comercial Ferro e Aço Ltda, uma das maiores distribuidoras de aço do país. Na decisão o magistrado proibiu o corte dos serviços de energia elétrica, água, luz, gás e telefone da empresa por 90 dias, e estabeleceu multa de R$ 5 mil por dia em caso de descumprimento da determinação.
No pedido, a empresa alegou que em razão da paralisação de atividades não essenciais decretada em razão da pandemia, não conseguiria cumprir o plano de recuperação judicial, que envolve o pagamento de parcelas de dívida que teriam impacto de aproximadamente R$ 1 milhão.
Decisão semelhante foi proferida pelo juiz Alexandre de Carvalho Mesquita, da 1ª Vara Empresarial do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Ele proibiu o corte no fornecimento de energia elétrica e de água do estaleiro Mauá, em Niterói, por 90 dias ou até o encerramento do estado de calamidade pública por conta do coronavírus. A empresa do grupo Sinergy já empregou quase 10 mil pessoas no auge da construção naval, mas hoje está em recuperação judicial, com dívidas de R$ 1,5 bilhão.
Em Minas Gerais, a Cemig Distribuição e a Copasa (empresa estadual de saneamento) foram proibidas de interromper o fornecimento de energia e água das empresas Café Bom Dia Ltda. e Agro Coffee Comércio, Importação e Exportação Ltda., também em recuperação judicial. A proibição vale por 90 dias ou até o fim do estado de calamidade pública, com multa de R$ 50 mil por descumprimento.
Em São Paulo, além de determinar a proibição do corte de luz por 90 dias, o juiz da 1ª Vara Judicial do Foro de Santana de Parnaíba, Bruno Paes Straforini, também reduziu o contrato de energia da Cobremack Indústria de Condutores Elétricos Ltda. A liminar determina que a empresa deverá pagar apenas pela energia consumida e não pelo que foi contratado no mercado livre.
Lei estadual
Em Santa Catarina, a Celesc obteve liminar do Tribunal de Justiça contra contra a aplicação da Lei Estadual 17.933/2020, que impedia cortes por inadimplência de todos os clientes da distribuidora até dezembro de 2020. A legislação também prorrogava o pagamento das faturas de março e abril e determinava o parcelamento em até 12 vezes, sem juros ou multas.
Na decisão, o TJ reconheceu a competência exclusiva da União para legislar sobre energia elétrica e determinou o cumprimento das determinações da Resolução Normativa n° 878, da Aneel, que suspendeu o corte no fornecimento apenas para consumidores residenciais e serviços essenciais.
Para Rodrigo Bertocelli, sócio do escritório Felsberg Advogados, a tendência hoje, diante do horizonte de incertezas em relação aos impactos econômicos da epidemia, é o aumento dos litígios. Ele destaca que as distribuidoras já sentem os efeitos da Covid, com a queda na demanda e a inadimplência.
Ele fala em conflitos decorrentes do federalismo, com a invasão de competências que são exclusivas da União, no caso do setor elétrico. Em sua avaliação, isso certamente vai trazer incertezas e, em razão delas, pode afetar investimentos.
Bertocelli destaca a decisão da Aneel de recomendar a negociação entre distribuidoras e grandes consumidores sobre a postergação no pagamento da diferença entre a demanda medida e a contratada. Ele também vê também como positivo o caminho apontado pelo Decreto 10.350, que sinalizou com o uso de recursos da Conta Covid para cobrir essa parcela da demanda. “Vejo aí uma luz, e isso vai diminuir o escopo de medidas judiciais. Mas não acredito que [a judicialização] vai acabar”.