Convidada para um contraponto no último painel do Enase 2022, que tratou sobre as eleições e os caminhos para o futuro da energia elétrica no Brasil, a professora da UFRJ, Clarice Ferraz, defendeu que a privatização da Eletrobras não pode anteceder a reorganização institucional do setor por mudar a valoração dos ativos e trazer profunda insegurança e a continuidade da judicialização de processos nada atrativos para os investidores.
“Se sabemos que se amanhã o PL 414 vai mudar as regras profundamente, que vai olhar para adequação da carga e oferta com perfil sazonal, quem detém estoque e energias despacháveis será muito favorecido e assim vão se criando os lobbys de poder”, comentou a especialista em sua apresentação nessa quinta-feira, 9 de junho, afirmando ser uma lição das reformas de outrora.
Para ela cada país deve seguir com suas particularidades e políticas, mas primeiro colocando as regras do jogo para depois jogar, e não incorrendo nos mesmos erros do passado e cometendo outros muito graves, com ações judiciais entrando e sendo derrubadas todos os dias.
“Privatização não vai resolver energia cara e a transição energética não tem sido endereçada. A inserção forçada de térmicas é um erro duplo que sabota a transição e aumenta o preço da energia”, aponta a docente, incluindo os principais impactos ao setor industrial, que terá eletricidade cara, poluente, e perdas de competitividade com um rebote vindo do exterior, a partir de uma série de barreiras tarifárias por conta de argumentos climáticos com relação a taxação do carbono nas mercadorias.
Clarice, que também dirige o Instituto Ilumina, órgão atuante junto ao Tribunal de Contas da União (TCU) no processo da Eletrobras e dos fundos regionais – que trata da obrigação da empresa privatizada em realizar um aporte para manutenções e melhorias nos estados -, chama a atenção que caso o modelo de capitalização proposto avance o TCU não poderá fiscalizar esse movimento que envolve recursos públicos.
“É desse nível a desestruturação e o açodamento, visto serem inúmeros problemas e esse um pequeno exemplo mas que consolida o poder do Congresso, que terá milhões por ano para fazer sua política regional, com o jogo se fechando e o Brasil voltando para uma fase muito ruim”, indica.
Para a executiva, cada presidenciável pode ter sua agenda própria mas há temas de urgência em comum, como liberalização do mercado e resolver os problemas estruturais, como ter um custo de operação em quase R$ 3 mil e PLD a R$ 72/MWh no ano passado.
“Regulação é ajuste fino. O Brasil precisa de política energética e pode ser líder na transição, mas tem que olhar para a Eletrobras com atenção, pois estamos falando de abrir a mão dos estoques reguladores e colocar em um só agente”, explica, ressaltando que 50% de armazenamento é muito poder de mercado e que é preciso estabilidade e previsibilidade dos preços que podem vir dos reservatórios, através de um balanceamento e backup limpo da carga.
“Não vai ter jeito, o novo presidente terá que rever algumas coisas, ainda que não seja uma reversão, seria uma anulação da descotização no processo da Eletrobras. Como Simone Tebet falou, uma canetada acaba com os jabutis ou pode acontecer uma nova medida provisória. Não digo que é bom, mas pode acontecer”, avalia Clarice.
Governança nunca foi consolidada
Com relação a governança do setor, a professora da UFRJ afirmou que nunca houve a consolidação das práticas desde a época do governo Fernando Henrique Cardoso, quando se propôs a primeira reforma e a industrialização e eletrificação do país. “Sempre foi uma estrutura falha, que não souberam olhar direito no passado”, resume.
Ela também citou que o conjunto dos reservatórios das UHEs apresenta características de monopólios natural e que dividir a estatal de energia irá desotimizar a operação de um uso coordenado quando se faz o despacho centralizado e todos os ritos respeitados.
Para Clarice, é necessário resolver o risco hidrológico e não vender uma empresa que justamente é mais exposta e tem nos reservatórios a função essencial de acesso a água, com uma série de atividades econômicas, inclusive para abastecimento humano. “Abrir mão desse controle e dizer que, baseado no PL 414 cada agente opera seu risco? Será que vão conseguir bancar 50% que ficou descoberto pelo MRE?”, questiona.
Por fim, a diretora do Instituto Ilumina lembrou que a energia mais cara também contribui para um quadro de 33 milhões de pessoas passando fome pelo país, quase 15% da população, número que segundo ela triplicou no atual governo.
“Isso nos diz respeito, pois o preço da eletricidade está em tudo. A ineficiência do setor elétrico tem feito gente passar fome”, conclui, lembrando que por outro lado a distribuição de dividendos das companhias do setor não tem sido afetada.
Setor precisa de mea culpa
Complementando o debate, o CEO de Negócios de Energia na consultoria Neal, Edvaldo Santana, começou sua fala afirmando que o setor elétrico precisa fazer sua mea culpa e não colocar as responsabilidades apenas no congresso e no poder executivo, sendo necessário assumir as decisões equivocadas e falhas do passado antes de levar os problemas e desafios para terceiros.
“Tem que ser coerente e dar o recado correto. Mais de 75% dos custos são do setor elétrico”, pontua o especialista, referindo-se a outras apresentações no evento que falavam em uma taxa de 51%. Segundo ele com os encargos e tributos incluídos como custos de fora do segmento estariam sendo retirados R$ 60/MWh de encargos da crise do ano passado, que é de responsabilidade do setor, assim como o subsídio de desconto do fio na CDE, que de R$ 32 bilhões desse ano só R$ 7 bilhões não são próprios da cadeia energética.
Edvaldo lembrou da época que entrou na Aneel como superintendente, em 2000, e que dois anos depois houveram duas CPIs no Pernambuco e Ceará, percebendo que todos agentes viam que era um jogo político e de “cada um cuidando do seu”, mas jamais coisas que repercutiam o Brasil inteiro e a Aneel vencia todos os processos, o que não acontece mais.
“Esse poder começou a passar para o legislativo e não pelos deputados. Se perdia uma discussão na Aneel, outras partes levavam as causas para o congresso e até 2010 as medidas provisórias não tinham tantas emendas ou jabutis”, relembra, completando que o regulador se enfraqueceu bastante pelo “esquadrão avançado do congresso”, mas sendo também atropelada visto muitos terem pedido que o congresso tomasse conta da regulação e planejamento.
Em 2022 o grande pedido de Edvaldo para o próximo presidente é, temos como recuar? O que ele vê como “muito difícil”, visto o próprio executivo ter perdido para o legislativo. “Se não vai recuar lá em cima não sei se vai para o setor elétrico. Com governo atual ou próximo ficou tão ruim que confesso que vejo o melhor para o futuro, pois não tem como ficar pior do que está”, analisa.
A avaliação é de que o custo só aumenta por problema de gestão e governança, e que hoje existem mais dificuldades pois o congresso terá que ceder. Outro ponto abordado é que será muito complicado voltar atrás na privatização da Eletrobras, e que se a intenção do próximo governante for realizar a cotização novamente, esse seria um argumento muito frágil.